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Tempos de Pandemia e a Construção do Possível


Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicanalise Clinica e Cultura (UFRGS), servidora pública municipal.  Coordenadora da Proteção Social Especial-FASC/PMPA, docente na Faculdade São Francisco de Assis.

Nestes tempos pandêmicos, o medo e o desamparo batem à porta de todos.  A vida, o trabalho e as relações sociais se alteram radicalmente, exigindo um enorme esforço de adaptação e de criatividade.   Novas formas de trabalho estão sendo inventadas, uma nova rotina foi estabelecida, a casa antes vazia durante o dia, agora está cheia, as crianças fazem a sala de campinho para o bate bola e até os adolescentes são deixados em paz em seus quartos com as portas fechadas. Tempo de pandemia, tempo de suspensão, tempo de intensidades e excessos.

  Como serão nossos próximos dias?  Conseguimos achatar a curva, e agora? Entraremos no distanciamento controlado? O uso de máscaras será obrigatório em todos os espaços? Alguns falam convictos de que devemos obedecer às orientações da OMS e mantermos o isolamento social, outros protestam pedindo a volta ao trabalho. Alguns encontram apaziguamento mantendo-se protegidos em suas casas, outros estão desesperados frente ao risco de redução de salários e ameaça de desemprego.  O cenário político é desolador, o que aumenta ainda mais a sensação de insegurança.

Alguns Estados, como o RS, flexibilizaram as orientações de isolamento social considerando as particularidades regionais.  Os efeitos desta decisão ainda não sabemos. Outros, como Amazonas na sua capital Manaus, vivem situação catastrófica com inúmeras mortes diariamente, causando imensa dor e sofrimento na população. 

A pandemia alterou a vida, mas também a morte; estamos diante da impossibilidade de velar os mortos. Imagine a dor em não poder acompanhar um familiar em seus últimos momentos, realizar uma despedida, um ritual de velório. O trabalho de luto será imensamente mais doloroso e difícil nestas condições, ou até infindável, como aponta KEHL (2020) em entrevista à Revista Época.     

O Covid-19 colocou em cena muitas fragilidades de nosso pacto social.  Neste país, os direitos infelizmente ainda não estão garantidos a todos, apesar das legislações. Existem “ vidas que ninguém vê ” e a orientação “ fique em casa” revela que muitas famílias não têm casa para fazer o isolamento social, não tem acesso à água, à alimentação, ao saneamento básico, às tecnologias de informação, ao trabalho remoto.

 Como José vai fazer os “bicos” que precariamente garantiam o alimento do dia? Como manter as ancoragens (BROIDE, 2008) os fios frágeis que sustentavam a vida de muitos?  A pandemia, para alguns, é muito mais dramática; os recursos, tanto materiais como subjetivos, são muito diversos e desiguais.

 Na Assistência Social, o trabalho é intenso; embora os trabalhadores, assim como o público atendido, também fiquem, muitas vezes, invisibilizados. A precariedade das políticas públicas se revela de forma mais violenta e o corre-corre cresce para poder, minimamente, sustentar a chegada de algum recurso na mão daquele que tem fome. 

Novas demandas, novas urgências. Equipes demandando orientações, pedidos de recursos, desde os mais básicos como alimentação, máscaras, álcool gel, até um telefonema no meio da noite de um albergue pedindo orientação frente à chegada de um casal com indicação de isolamento social e uma receita da Unidade Básica de Saúde indicando doença respiratória e suspeita de Covid-19.  Como acolher estes sujeitos em um espaço coletivo com mais 80 pessoas?  Como garantir acolhimento e segurança a todos? Improvisar um espaço de isolamento sem poder oferecer todas as garantias e cuidados? Não acolher e deixar estes sujeitos no mais completo desamparo no meio da noite? Difícil decisão para o trabalhador que está na linha de frente; como acolher e fazer uma borda possível neste intenso real?   

 As vulnerabilidades são muitas e a resolução não depende somente do profissional que está naquele atendimento direto.  Muitas vezes, a intervenção possível é a escuta, o reconhecimento do sofrimento daquele sujeito e a construção de uma alternativa junto com ele e com os demais serviços que compõe a rede de atendimento socioassistencial.  Agora mais do que nunca, precisamos uns dos outros, precisamos fortalecer os laços para vencermos o vírus e a devastação que ele vem produzindo.   Temos visto belos gestos de solidariedade em todos os cantos deste tão sofrido país, o que desperta nossa esperança de que “vai ficar tudo bem”. 

 Precisamos cuidar da vida e tecer fios que nos sustentem nestes tempos de pandemia, trabalhar com o possível a cada momento tem sido uma forma de enfrentamento interessante. Não temos todas as respostas, nem todos os recursos, não sabemos como resolver tudo. Reconhecer nossa insuficiência e desamparo e trabalhar junto com o outro tem sido importante e apaziguador da angústia.  Respeitar o tempo de compreender esse turbilhão que nos tomou de surpresa e irmos descobrindo novos jeitos de fazer as coisas, revendo nossos valores podem nos levar, em algum momento, ao tempo de concluir e a uma reinvenção do nosso cotidiano. 

Manter nossa esperança e capacidade de desejar pode ser um bom caminho para preservar nossa saúde mental nestes tempos de pandemia.  Conforme nos lembra Freud ( 1974 [1916])  no texto Sobre a Transitoriedade “ (…) reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno ainda mais firme e de forma mais duradoura do que antes” ( p. 348).

Marisa Batista Warpechowski

 Referências:

BROIDE, J. Psicanálise nas situações sociais críticas: violência, juventude e periferia em       uma abordagem grupal. Curitiba: Juruá Psicologia, 2008.

 KEHL, M. R. Talvez seja infindável o luto dos familiares. [ Entrevista concedida] a Luiz Fernando Viana. Revista Época, 19 de abril de 2020. Disponível em: <https://epoca.globo.com/talvez-seja-infindavel-luto-dos-familiares-diz-maria-rita-kehl-1-24382274>. Acesso em 27 de abril de 2020.

FREUD, S. Sobre a transitoriedade. Obras Psicológicas Completas. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 342-348 [1916].

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