Convidados

Os desdobramentos do trabalho na saúde mental: relato de uma trajetória entre a psicanálise e o yoga.

Luciane da Costa Pegoraro
Psicóloga-Psicanalista; Professora de Yoga; Graduação em Psicologia pela PUCRS; Licenciatura em Psicologia pela UFRGS; Especialização em Teoria Psicanalítica pela Unisinos; Mestrado em Educação pela UFRGS; Especialização em Neuropsicologia pela UFRGS.

Inicialmente, quero agradecer a querida colega Márcia Vitorello, supervisora do NPOT, por me convidar para escrever para este blog.  Sinto-me feliz e grata pelo convite.

Assim como preparamos o corpo para o início da atividade física, de modo análogo, nosso cérebro, como órgão natural e intrínseco ao corpo, necessita também de alguns “gatilhos” para executar o trabalho do intelecto. Então, vou me preparar, iniciando por um pequeno jogo de associação de ideias como forma de aquecimento e assim poder desenvolver meu raciocínio.

Para mim, escrever nunca foi uma tarefa fácil.  Arrisco-me aqui a fazer uma breve aproximação entre a escrita, compreendida enquanto resultado do gesto que codifica uma construção simbólica inscrita num corpo, com o estado de presença das práticas meditativas. De acordo com De Luca & Barros (2019), o estado de presença na meditação resulta de um estado de consciência que surge a partir do cultivo da atenção ao momento presente, de maneira intencional, sem julgamento, com discernimento, curiosidade e compaixão. O exercício da escrita, numa aproximação com aquilo que se pretende alcançar pela meditação, é como um músculo que precisa ser insistentemente trabalhado para que opere na excelência de sua função no momento em que está sendo solicitado, mas também para que se torne instrumento efetivo ao longo dos anos, se não enquanto um talento do sujeito, de outro modo, como uma habilidade adquirida, a fim de que isto reverbere como fator de saúde e resiliência.

Imagem: Pixabay, 2021.

A escrita sempre suscitou em mim um grande fascínio, e no reverso disto, me coloca também sempre em uma espécie de “estado de alerta”. Incluo-me no hall daqueles para quem o escrever, na perspectiva das emoções, desencadeia expressões no tônus muscular, sintomas de ansiedade, nuances no humor etc. Enfim, modus operandi do sujeito contemporâneo reagir frente às demandas de troca da moeda simbólica do conhecimento. Mas tudo isto acontece não sem razão, pois para escrever precisamos desvelar nossas representações internas, trazendo à superfície da consciência o tesouro de significantes, o mais secreto dos bens que vamos construindo ao longo do tempo vivido dos acontecimentos, mergulhado no banho afetivo das emoções subjetivas e do tecido social.

Parto daí para falar um pouco sobre o que tenho me dedicado a pesquisar e a trabalhar ao longo dos anos. Como psicóloga, firmei meus estudos e minha prática clínica nos castelos da psicanálise. Meu percurso se deu, desde a época de estudante, nos umbrais da psicanálise freudo-lacaniana. Meu entendimento sempre foi o de estabelecer o diálogo, partindo da psicanálise com outras áreas do conhecimento, numa abordagem interdisciplinar.

No Mestrado na área da Educação, trabalhei o tema da resiliência, estudando um autor pouco conhecido para o meio psicanalítico, Bóris Cyrulnik, neurocientista, psiquiatra e psicanalista. Naquele momento, a resiliência era ainda bastante vinculada a uma abordagem da psicologia comportamental. De origem francesa, Cyrulnik elabora uma abordagem muito interessante da resiliência desde a etologia, enlaçada com a teoria do apego e a psicanálise. Creio que foi a partir deste estudo que meu leque de referencial teórico começou a se abrir. Anos depois, me interessei pela lente da neurociência, o que culminou com uma Pós-graduação em Neuropsicologia.

Imagem: Pixabay, 2021.

Naquele contato com outro jargão científico, completamente diferente daquilo que até então eu tinha estudado, percebi, não sem sofrimento, que estava diante de um conhecimento que era totalmente novo.  Seguia tendo uma “alma de psicanalista”, mas uma janela se abria para o universo das neurociências, mudando efetivamente meu olhar clínico. Naquela mesma época voltei a fazer yoga, prática que eu havia conhecido ainda na adolescência, e iniciei minha formação profissional, vindo a trabalhar como professora de yoga um tempo mais tarde. Por um período, me afastei da psicanálise, pois embora eu fosse uma fervorosa adepta do olhar interdisciplinar, não vislumbrava como dar uma dimensão epistemológica entre a filosofia do yoga e a psicanálise. Além disto, não desejava ferir o rigor dos preceitos psicanalíticos.  

Praticando e estudando o yoga, compreendi que algumas modalidades de terapias com abordagem cognitivo-comportamental, fazem uso da meditação como ferramenta, inclusive na prática clínica; talvez aí a resistência de alguns colegas psicanalistas à filosofia do yoga e à meditação. Aqui vou me permitir a um chiste, pois o fato é que de um modo quase tragicômico, eu começava a me sentir como o personagem do Patinho Feio, de Hans Christian Andersen que não se reconhecia mais no seu bando.

Compreendendo os fenômenos sob uma perspectiva multifatorial, agrego aqui uma nova ideia que me auxilia para poder falar do impasse que se deu para mim quando resolvi estudar com afinco o yoga reconhecendo neste lugar a existência de um desejo. Aqui abro um parêntese e retomo Cyrulnik que fala da importância de criar um relato na elaboração dos fatos.

Pois bem, venho de uma geração que viveu entre os respingos da tradição do século XX e o que passamos a chamar de pós-modernidade e sua realidade líquida. Havia, portanto uma crença que permeava o tecido social, em que as escolhas profissionais eram escolhas para uma vida toda. Sobretudo nos processos seletivos nas instituições, o tempo de permanência nos empregos anteriores era um importante critério de seleção ainda na fase do recrutamento. A isso chamávamos “estabilidade nos serviços”, o que conferia credibilidade ao candidato. Essa cultura em que a minha geração foi criada, de uma sociedade tradicional, patriarcal, tem uma incidência simbólica muito poderosa sobre a forma de ser e se colocar na minha geração, na vida pessoal e profissional.

A obediência ao Outro pode muitas vezes nos cegar quando nos vemos diante de alguma encruzilhada. Agora, permito-me um salto e reúno minha trajetória inicial na psicanálise com a vivência de uma tradição oriental que para mim já não se antagonizam.

Imagem: Pixabay, 2021.

Diversos trabalhos acadêmicos têm abordado os inúmeros benefícios para a saúde física, mental e emocional que as práticas do yoga e da meditação resultam para os indivíduos, enquanto contraponto ao panorama mundial que estamos vivendo, que vem se desenhando com um verdadeiro massacre e extinção dos recursos naturais do planeta. No plano social, ocorre uma intensa desconstrução dos valores éticos e morais nas relações sociais. Culmina em 2019 o surgimento de uma ameaça global, a Pandemia que em poucos meses acomete de forma rápida e grave a vida humana no planeta, e mesmo que de forma desigual, em velocidade de propagação e na resposta de cada país, a morte e o adoecimento acometem milhões pelo mundo.

Esta realidade nos invade com o sentimento de espanto e nos coloca em contato com o que Freud (1919) descreve sob o nome de “o estranho”- Das Unlheimliche – sob a forma de medo da morte, da angustia, do horror. Este sobre salto atinge o cerne da condição humana quanto ao controle sobre a própria vida, o que expõe a fragilidade de continuar existindo de modo seguro e duradouro. Vivemos num contínuo processo de sofrimento cujos efeitos em uma análise longitudinal somente iremos conhecer a posteriori. O isolamento social, o medo do contágio, a perda de familiares e amigos, são agravados pelas perdas das atividades de trabalho e renda.

Mas o que poderia trazer certa ordem a este caos que estamos vivendo? O que poderia apaziguar de certo modo este medo diante do estranho?

Antônio Nobre (2019) defende a ideia de que precisamos cultivar o amor, o respeito ao próximo:

“[…] existe um amor incondicional na natureza, esta é uma linha mestra de funcionamento do sistema natural, é cuidar do próximo[…] Precisamos nos colocar diante da percepção coletiva que na natureza impera a colaboração. Sem colaboração não existe complexidade. O amor é uma força do universo, de fusão. O funcionamento isolado é uma anomalia na natureza, cancerígena”.

Melanie Klein (1984) desenvolveu os conceitos de inveja e gratidão como organizadores psíquicos. O sentimento de gratidão seria uma das expressões fundamentais da capacidade de amar e fundamenta a apreciação da bondade nos outros e em si próprio.

Imagem: Flickr, 2021.

Tenho me dedicado a estudar e compreender melhor os conceitos abordados aqui por diferentes autores. Sentimentos como o amor, a bondade, a compaixão norteiam as práticas de Yoga e Meditação. Estas práticas milenares originárias do Oriente aparecem como importantes ferramentas, para que possamos enfrentar as adversidades por que passamos, no sentido de um novo equilíbrio individual e coletivo.

 Aqui finalizo o meu relato e espero sinceramente que algumas ideias que aqui apresentei possam contribuir no enriquecimento de uma troca dialógica na procura de transformação de conceitos, de sentidos coletivos no trabalho e na vida cotidiana neste momento em que percebemos que a caminhada individualista não resultou em nada melhor que desesperança e em que acúmulo material e concentração de poder vem danificando o planeta e as tramas do que nos fez crescer como humanidade.

Referências

BARROS, L.; DE LUCA, M. Mindfulness em Família. São Paulo: Editora Fontanar, 2019.

CYRULNIK, B. Falar de Amor à Beira do Abismo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006.

DONATO, A. N. In Selvagem Ciclo 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Nhom_vWVFos> Acesso: 20 jun. 2021

FREUD, S. “O Estranho“. In: Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918/2006). Rio de Janeiro: Imago, v. XVII.

KLEIN, M. Inveja e Gratidão. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1984.

3 thoughts on “Os desdobramentos do trabalho na saúde mental: relato de uma trajetória entre a psicanálise e o yoga.

  1. Meus parabéns! Excelente relatos. Guardarei nos meus arquivos para reler e meditar sobre os assuntos comentados.

  2. Adorei a escrita! Me identifiquei em muitos aspectos, sendo eu também psicologa e professora de Kundalini yoga e Meditação. Obrigada pelo teu compartilhar!

  3. Maravilhoso texto, obrigada por compartilhar! Estudo Psicologia, fiz análise psicanalítica, sou professora de Kundalini Yoga. Ambas modificaram a forma de me relacionar comigo mesma, com os outros, com o mundo. São métodos diferentes, com resultados diferentes, que se complementam muito bem.

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