Convidados

Qual o futuro do futuro? Questões sobre a experiência adolescente em tempos de políticas de morte

Rose Gurski[1]
Prof. Associada do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia – Instituto Psicologia UFRGS / Orientadora no Programa de Pós-graduação Psicanálise: Clínica e Cultura -IP UFRGS / Orientadora no Programa de Pós-graduação Psicologia Clínica – IP USP / NUPPEC- Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura

Trabalhando há muitos anos com temas ligados à adolescência contemporânea a partir das pesquisas e intervenções do NUPPEC/UFRGS[2], temos nos inquietado com a complexidade do sofrimento psíquico apresentado pelos jovens atuais. Entendemos que os modos de sofrimento psíquico que esses adolescentes apresentam evocam questões não só individuais, mas, de caráter ético, político e social.

Imagem: Canva, 2021

Renovando a aposta freudiana acerca da torção irredutível entre o social e o psíquico e, simultaneamente, recusando explicações simplistas de causas somente individuais ou puramente orgânicas, buscamos problematizar o aumento preocupante do mal-estar juvenil atual. Já há algum tempo, temos convivido com o aumento das taxas de sofrimento psíquico de adolescentes e jovens. Destacamos que, no Brasil, em 2016, o suicídio foi a 4ª causa de morte entre jovens. Ao que perguntamos: o que a ausência da vontade de viver pode revelar sobre as condições de nosso laço social? De que forma os adolescentes têm vivenciado a mais delicada das passagens subjetivas em meio às configurações de um laço atual, cada vez mais, marcado pela propagação de discursos de ódio assentados em políticas de morte? O que tais manifestações sintomáticas tem a nos dizer sobre as condições sociais, culturais e políticas?

Sabemos que a formulação do desejo de viver não é uma tarefa fácil para ninguém, sobretudo na passagem adolescente, quando o tema do sentido da vida se amplia e a pergunta sobre o si mesmo ganha um novo tônus. Para uma certa adolescência, o lugar de proteção da infância, cujo abrigo era o lastro da consistência do adulto, gradativamente, faz trânsito e o sujeito, ainda sem muito preparo, se vê na iminência de ter de falar em nome próprio, bancando um lugar de fala, com toda a exposição que a situação comporta. Este “novo nome” é escrito a partir de elementos que os jovens recolhem da cultura com todas as instabilidades próprias às variáveis de raça, de classe social e de gênero que participam deste turbilhão.

Não raro, vemos, nesta fase, o abandono escolar, a apatia, o isolamento, as pequenas transgressões e outros sintomas claros do mal-estar na adolescência que pautam o cotidiano das famílias e das instituições sociais. Nesse sentido, em tempos pandêmicos, precisamos, mais ainda, nos inquietar com as condições de construção de perspectivas de futuro, tanto na dimensão individual como coletiva.

O sequestro atual do tema do suicídio pela psiquiatra medicamentosa deve nos fazer interrogar de que forma vem funcionando a rede de proteção e acolhimento dos adolescentes e jovens. De que forma as instituições e políticas públicas de cuidados em saúde e educação conseguem escutar os sinais de sofrimento psíquico destes sujeitos? Se tomarmos as estatísticas crescentes de abandono escolar, temos de pensar nos sinais que estes jovens transmitem ainda antes da passagem ao ato e do desligamento da escola. Nesse sentido, importa perguntar: o que é feito, afinal, pelas instituições e políticas quando se produz a evasão escolar de um aluno? Onde a rede de proteção integral, preconizada no ECA, se apresenta? De quantos descasos e invisibilidades se faz uma tentativa de suicídio de um jovem?

Imagem: Canva, 2021

Freud (1910/1969), em 1910, em uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, que tratava justamente do suicídio de adolescentes de escolas secundárias, sublinhou, vivamente, que a escola deveria fazer mais do que deixar de impelir os jovens para o suicídio – argumento dos educadores da época. A escola, segundo ele, deveria transmitir aos jovens a vontade de viver, pois se trata de uma época em que os sujeitos estão afrouxando os laços com os pais e precisam de um outro espaço, que não a casa e a família, para investir o seu despertar no mundo lá fora.

Imagem: Canva, 2021

Não é demais lembrar que os adultos de hoje produzem narrativas mórbidas, de modo que a alteridade é a primeira a morrer. Nesse sentido, é preciso assinalar que, quando, no lugar do desejo de viver da juventude de uma época, encontramos, do ponto de vista das governanças, uma opção pelo “deixar morrer” temos de assumir que estamos frente a um adoecimento que não é só do sujeito, mas, sobretudo e, de modo anterior, do laço social. É assim que, em nome do futuro de uma perspectiva de futuro, precisamos tratar de construir espaços sociais e políticos pautados pela articulação de desejos de vida e da criação de sonhos – e não em pautas de morte.


[1] Psicanalista, membro da APPOA. Professora do Instituto de Psicologia UFRGS, do PPG de Psicanálise: clínica e cultura/UFRGS e do PPG Psicologia Clínica/USP. Pós-doutoranda IP-USP; Pesquisadora Colaboradora do PSOPOL/USP. Coord. NUPPEC/UFRGS – Eixo Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação. Membro da Rede Internacional Coletivo Amarrações, da Rede Internacional INFEIES e da REDIPPOL. E-mail: rosegurski@ufrgs.br.

[2] Nossas pesquisas e intervenções são realizadas no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS) – Eixo 3. Este eixo dedica-se a investigar as condições do laço social contemporâneo com ênfase no tema da adolescência de sujeitos em situação de vulnerabilidade. No grupo, participam docentes, pesquisadores associados, mestrandos e bolsistas. Para outras informações: www.ufrgs.br/nuppec e www.facebook.com/nuppec

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