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Férias na escola: Summerhill, um lugar para aprender brincando

Ana Paula Melchiors Stahlschmidt
Psicóloga pela PUC-RS, com especialização na área de Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela USP, em Psicologia Clínica pelo CFP, mestrado em Psicologia Social pela PUC-RS, doutorado e pós doutorado em Educação pela UFRGS. Atualmente, é coordenadora e docente do curso de graduação em Psicologia da Faculdade São Francisco de Assis – UNIFIN e orientadora no Programa de Pós Doutorado em Ciências da Educação (PPDCE/UEP). Desenvolve em sua prática privada atividades clínicas e coordena o projeto Sinfonia de Bebês. É psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA.

Summerhill, a escola inglesa considerada “a mais antiga democracia infantil do mundo”, completou um século de existência recentemente. Fundada em 1921 por Alexander Sutherland Neill, mostrou-se vanguarda em termos de proposta pedagógica desde o início e, ainda hoje, surpreende pela forma inovadora como entende a educação e, para além dela, a subjetividade da criança.

Pexels, 2023

Liberdade, autonomia, respeito ao desejo. Práticas como dar aos estudantes a opção de comparecer ou não às aulas e não utilizar exames (a não ser eventualmente como diversão), tornaram a instituição polêmica e alvo de inúmeros debates, reflexões e críticas, desde que foi fundada. Mas foi na década de 1960 que o foco sobre Summerhill intensificou-se, com a publicação, por seu diretor, de um livro apresentando sua proposta, com uma coletânea de reflexões já elaboradas anteriormente e uma descrição da vida na escola (NEILL, 1969). Alicerçada pela teoria freudiana, bem como por autores como Reich, Bertrand Russel e John Dewey, com os quais Neill manteve correspondência ao longo de seus muitos anos como diretor (CROALL, 2013) e especialmente em sua convicção radical sobre liberdade e respeito à criança, Summerhill adaptou-se aos tempos, mas manteve-se fiel aos ideais que embasaram sua criação. Ainda hoje, um passeio pelo site da escola[1] ou um encontro com a obra de Neill (que faleceu em 1973) e seus seguidores, nos apresentam uma proposta inovadora e o frescor e entusiasmo com que seu criador dirigiu a instituição até o final da vida. O destino de Summerhill, que muitos consideraram fadada ao fim, com a morte de seu criador, parece ser o de seguir cativando e incentivando a todos os que acreditam na criança como sujeito.

A escola, entretanto, enfrentou grandes intempéries ao longo de sua existência. Dificuldades financeiras, polêmicas, necessidade de evacuação durante os bombardeios na segunda guerra mundial, uma pandemia e, talvez o maior de todos, o embate em 1999 com o governo inglês, que exigiu, após um relatório de inspeção, mudanças que foram consideradas incompatíveis com a filosofia da escola e, logo, contestadas por direção, professores, alunos, pais e comunidade educacional do mundo todo. O episódio, que levou Summerhill à Royal Courts of Justice e terminou vitorioso para a escola, é narrado no livro de Vaughan, Readhead, Brighouse e Stronach (2011), autores e atores que, ocupando diferentes papeis, estiveram envolvidos no mesmo. E também virou um filme, escrito por Alison Hume e dirigido por Jon East, para a BBC[2], disponível no Youtube.

Canva, 2022

Conheci a obra de Neill às voltas com os livros sobre educação disponíveis nas prateleiras dos meus pais, ainda adolescente e alguns anos antes de resolver cursar psicologia. Summerhill foi um dos alicerces mais importantes, se não o principal, na minha decisão de escolher esta graduação e de trabalhar com crianças. Meu entusiasmo com sua proposta segue ainda hoje presente. Me vi em muitos momentos, ao longo do meu percurso profissional, lendo, pesquisando e assistindo a filmes ou documentários e, posteriormente, escrevendo sobre a escola, especialmente quando de seu centenário (STAHLSCHMIDT, 2021a E 2021b).

Foi, portanto, como quem embarca em uma aventura há muito esperada, que me inscrevi num curso dez semanas de Summerhill sobre o papel do adulto na educação a partir da teoria de A.S Neill. Entusiasmada, mas, nem por isso, sem certa preocupação, ao mergulhar numa proposta de intensidade surpreendente e demanda não apenas teórica e logística (embora online, o curso aconteceu nos sábados e domingos em janeiro, fevereiro e março, no fuso horário da Inglaterra, o que implicou em finais de semana acordando de madrugada para assistir aulas em inglês), mas principalmente subjetiva.

Pexels, 2023

Refletir sobre minha própria prática e o contexto do trabalho com crianças ao longo de 30 anos de profissão, com os múltiplos desafios implicados (a pandemia provavelmente o mais delicado destes), não foi tarefa fácil. Nem por isso, deixou de ser extremamente instigante, além de proporcionar cansativos mas muito agradáveis finais de semana trocando com diferentes profissionais, com ampla multiplicidade de experiências, cujas atividades e vidas acontecem em todas as partes do planeta. Conhecer de perto uma experiência tão idealizada também me trazia certo receio e, portanto, ter ao longo de 10 semanas aulas com os diretores da fundação hoje encarregada de difundir a proposta de Neill (A.S.Neill Summerhill CIC), um dos quais o neto do criador da escola, e constatar o quanto compartilho ainda hoje destes valores e ideais sobre a compreensão da criança, me trouxe uma enorme satisfação. Na esteira das discussões, estudos e relatos sobre o cotidiano de Summerhill hoje, também tive acesso a vídeos e documentários não disponíveis para o público em geral e li o livro de Zöe Readhead Neill (2021), filha do fundador e diretora da escola há muitos anos, tarefa que aos poucos compartilha com os próprios filhos. Encomendei a obra e esperei sua chegada com a mesma expectativa com que aguardava os livros de aventura enviados pelo correio na infância, e sua leitura também me acompanhou ao longo das semanas de aulas.

Pexels, 2023

O curso foi concluído em março deste ano e foi com alegria, orgulho e também certa tristeza pelo final, que recebi o certificado de participação. Como todos os demais colegas, me despedi da experiência com emoção e sensação de que muitos aspectos ficam em aberto e, certamente, ideias e ideais de Neill seguirão presentes nas minhas experiências, reflexões e prática clínica com crianças. Não raro, no consultório, me lembro de relatos e teorias do autor e me sinto reafirmando minha crença na criança. E não raro, me emociono com suas possibilidades de, quando autorizada e incentivada a isso, lidar com suas experiências e escolhas, com seu desejo. Mesmo que muitas vezes enfrentando para isso grandes desafios, que o cotidiano infantil na contemporaneidade a as vivências singulares de cada sujeito que recebo, certamente trazem para cada um.

Referências:

NEILL, Alexander Sutherland. Liberdade sem Medo: (Summerhill). São Paulo: Ibrasa, 1969.

READHEAD, Zoë Neil. Barefoot in november: Parenting the Summerhill way. Leiston, UK: A.S. Neill Summerhill Trust, 2021.

READHEAD, Zoë Neil. Foreword. In: CROALL, Jonathan (Ed). All the best, Neill: letters from Summerhill. United Kingdom: Routledge Revivals, 2013.

STAHLSCHMIDT, Ana Paula M. Os cem anos de Summerhill, um marco no conceito de “democracia infantil”. Porto Alegre, GZH, 14 de outubro de 2021a.

STAHLSCHMIDT, Ana Paula M. A propósito dos cem anos de Summerhill, a mais antiga democracia infantil do mundo. Correio da APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 315, novembro de 2021b.

VAUGHAN, Mark; READHEAD, Zoë Neil; BRIAGHOUSE, Tim; STRONACH, Ian. Summerhill e A.S Neill: a escola com a democracia infantil mais antiga do mundo. Petrópolis: Vozes, 2011.


[1] https://www.summerhillschool.co.uk/

[2] https://www.youtube.com/watch?v=TxngqMavda0

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