Tempo de criar
Dia 22 de abril de 2020 Aldrei do NPOT faz contato comigo por Whatsapp. Estamos no início de uma pandemia que causa a todos o desejo de contatos e trocas que nos ajudem a suportar melhor uma situação tão inédita. Nesta data, já estamos em quarentena faz algumas semanas, e eu, como muitos de meus colegas, trabalhando exclusivamente na modalidade remota, ou seja, as análises passaram a ser por telefone. De pronto me alegra o convite de escrever sobre minha trajetória de trabalho articulada à questão da pandemia e suas consequências sobre a saúde mental dos trabalhadores. De lá para cá (hoje, 20 de maio de 2020) muito transcorreu em termos do avanço do vírus, daquilo que virou uma lamentável contenda política a respeito das políticas públicas de prevenção e direção de tratamento do adoecimento que a Covid-19 causa. No entanto, em minha clínica percebo que a nova forma de trabalho, on-line, se estabeleceu de forma relativamente tranquila, ou seja, logo deixou de ser um objeto de dúvida ou incerteza quanto a sua ‘’eficácia’’. As análises se seguiram desde então; certamente cada analisando com seu ‘’timing’’ no que diz respeito a mergulhar nessa nova experiência em que o corpo está excluído, mas não a presença, especialmente a da palavra. Nesse sentido, tem sido muito interessante perceber a continuidade da transferência num contexto que antes era exceção, e mais, a importância desse tempo-espaço de escuta num momento de predomínio da angústia. A problemática não é tanto relativa ao fato de o trabalho se dar por essa outra via, mas às perguntas que passam a se colocar: com tanto ‘’tempo livre’’, o contato consigo mesmo aumenta, e com a falta dos nossos ‘’outrinhos’’, ampliam-se as perguntas que elaboramos sobre os modos de estar no mundo. Muitos analisantes dizem ‘’estou mais reflexivo’’. Assim, a minha experiência é de avanços interessantes nos tratamentos analíticos, pois me parece que a distância e esse intervalo (embora imposto) pode estar produzindo efeitos interessantes, inclusive no sentido de coisas que podem agora ser ditas com mais facilidade e que antes ficavam subtraídas das falas de alguns analisantes. Com essa novidade e com o fato de o espaço doméstico agora estar alargado (casa virou escritório, academia, restaurante, etc) tem tido lugar na cena analítica, muitas vezes, o inusitado. Realizam-se esforços para estabelecer um ambiente de privacidade em tempos de tanta publicidade e mostração. O inconsciente insiste em continuar encontrando vias de se fazer ouvir e para isso é preciso criar! Nunca se sonhou tanto.

Em busca de sustentação
Agora escrevendo, num tempo posterior à eclosão desse real que a pandemia traz, percebo que a primeira coisa que fiz foi buscar contato com meus colegas mais próximos com quem tenho boas transferências de trabalho. Ah! E manter a análise pessoal, certamente. Me senti, desde o princípio, tremendamente acompanhada. Estabeleceu-se um tempo em que mais do que nunca, me pareceu necessário reforçar os laços transferenciais e os de afeto. O que à primeira vista parecia puro desamparo, pura angústia, passou a ser modulado conforme algumas balizas foram sendo estabelecidas, lembrando essa ideia tão cara a nós psicanalistas, de que a angústia tem a ver com algo que se quebra no espelho e que perdemos, não localizamos mais. Então, me pareceu importante esse primeiro recurso do contato com os colegas, numa ideia de reafirmar os vínculos para iniciar essa travessia tão desconhecida, resgatando algo das identificações talvez, mas sempre considerando a diferença nessas relações, lembrando que os ‘’efeitos de massa’’ e identificação maciça nesses momentos podem ser bastante nefastos (como é possível notar nas manifestações insanas em alguns lugares na cidade que geram perigosas aglomerações). Em seguida, as leituras surgiram para mim numa dimensão de maior relevância, agora os livros eram companheiros, numa espécie de apoio elaborativo para seguir adiante. Tirei da prateleira um livro em especial que eu havia adquirido fazia muitos anos e que nunca tinha me arriscado a ler. Trata-se de ‘’É isto um homem?’’, de Primo Levi (1988). Me voltei a essa leitura, pois sempre ouvia dizer que o autor mantivera condições mínimas de humanidade – ou como disse uma colega, ‘’a força de seguir existindo apesar de qualquer terror’’ – para fazer sua terrível travessia por Auschwitz. Me parecia que ali eu poderia encontrar elementos para elaborar melhor a angústia e a associação (precoce, mas inevitável) do vírus à morte.
Conto a vocês um pouco dos meus recursos neste momento, numa aposta de que possam servir de inspiração e de alguma forma resgatar a esperança de que é possível passar por este momento, mesmo sem um saber que dê conta do que nos toca viver. Nesse sentido, vale a pergunta, qual a responsabilidade dos psicólogos e das psicólogas nesse contexto? Me agrada pensar que somos suporte, pois essa função abarca algo relativo a resistir, no sentido de suportar (junto!), e ao mesmo tempo remete à ‘’dar suporte’’, permitir ao outro condições de avançar, de movimentar-se. O trabalho que muitos alunos e ex-alunos da Faculdade São Francisco de Assis, hoje colegas, puderam acompanhar no NASF de Alvorada em que trabalho tem muito disso a meu ver.
Aproveito para lembrar também dos primórdios da minha relação com esta Faculdade. Foi pelo convite da querida colega Mercês Ghazzi que comecei a receber estagiários no Núcleo de Apoio à Saúde da Família, e receber estes estudantes teve para mim o efeito de pensar meu trabalho desde outro ponto, esse que inclui um lugar terceiro e a possibilidade de criação de novas formas de trabalho.

Questões para seguir
Essa pandemia eclode no momento em que a clínica já trazia situações de fragilidade muito grande dos sujeitos que escutamos, com recorrentes relatos de violência, de fragmentação dos laços e muitas inibições. O vírus, de forma totalitária, impõe que recuemos frente ao outro em sua dimensão física e, por isso corremos o risco de tomá-lo como inimigo facilmente. Assim, é possível nos perguntar como não recuar frente ao outro simbolicamente, continuando a sustentar os laços e a palavra, tão gasta por discursos vazios? Perguntas que vou tecendo, seja na psicanálise em intenção, seja naquela em extensão, desejando que nossas redes se mantenham vivas e produzindo a sustentação necessária para cada um de nós.