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O trabalho do analista de crianças na pandemia

Ana Laura Giongo
Graduada em Psicologia pela UFRGS
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS
Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

A psicanálise foi pensada por Freud como uma cura pela palavra. Assim, passar a incluir as crianças na psicanálise sempre envolveu um trabalho de invenção e de abertura para outro território. Os analistas de crianças contam com a mesma base conceitual e ética, mas precisam estar abertos a percorrer outras narrativas, sustentadas pela presença do corpo em jogo na cena analítica, em um espaço entre brinquedos, materiais gráficos e objetos passíveis de carregar projeções e histórias.

A pandemia chegou à clínica da infância como um grande desafio. Com os adultos e adolescentes, que têm a condição de narrar em palavras sua história e seu cotidiano, podíamos supor uma passagem relativamente tranquila para a modalidade online. Já com as crianças, nos deparamos com inúmeras dúvidas. Seria possível trabalhar através das telas? Suspenderíamos os atendimentos? Atenderíamos presencialmente mesmo numa situação que demandava distanciamento social? Vivemos dilemas éticos frente aos quais foi necessário responder através de nossa formação. Cada impasse precisou ser desdobrado na singularidade de cada caso. Nossa análise pessoal, supervisão e os laços sustentados pela transferência de trabalho, com pares que compartilham a ética psicanalítica, foram fundamentais para compor uma rede simbólica que sustentasse a continuidade do nosso trabalho.  

Com o passar dos meses e na iminência de que a pandemia não seria limitada a pouco tempo, foram surgindo experiências singulares e invenções para tentar levar adiante o trabalho com as crianças e suas famílias. Entre casos interrompidos e outros que nos surpreenderam com seus desdobramentos, podemos depois de um ano levantar algumas hipóteses para responder a uma pergunta que se colocava em março de 2020: quais seriam as condições para que a análise com uma criança pudesse seguir durante a pandemia? 

Em linhas gerais, podemos situar dois elementos fundamentais que delinearam os caminhos da clínica com crianças neste ano:  os “tempos do sujeitos” em atendimento e as condições transferenciais. Nestas duas questões se destacam a marca da singularidade e a presença de uma posição analítica que convoca a pensar cada caso a partir de suas peculiaridades. As intervenções e a direção da cura dos casos precisam respeitar as condições de cada sujeito e de cada transferência, bem como carregam em si o estilo de cada analista, a forma como a psicanálise lhe chega e se expressa nos atos analíticos, pois este foi um tempo de várias invenções e ousadias sustentadas pelos analistas em transferência.

Imagem: Flickr, 2021.

Quando trabalhamos com crianças, acompanhamos seu processo de constituição psíquica, que se dá em tempos, sendo que as crianças chegam à análise por algum entrave nesse processo. Nas palavras de Alba Fresler (2011), […] “a criança é um lugar no Outro”, nasce e começa sua existência como objeto de um Outro. Recebemos, então, a criança do Outro, que pode ocupar um lugar de objeto de amor, objeto de desejo ou objeto de seu fantasma.  A cada um destes lugares, Alba Fresler (2010) associa uma posição ocupada pelos pais na transferência: pais que demandam, que perguntam e se perguntam, ou que mandam. Estas diferentes posições favorecem ou dificultam a sustentação da transferência. 

Falar em tempos da constituição psíquica não implica necessariamente um tempo cronológico, mas sim operações psíquicas que se dão ao longo do tempo, em ritmos e condições singulares. A trajetória de um sujeito começa num tempo de alienação, onde a criança se constitui como objeto do Outro e deve dar lugar a um tempo de separação, onde a castração simbólica vai operando a constituição de um sujeito. A cada tempo e em cada caso, ocupamos lugares singulares na transferência.  No tempo da alienação necessária ao devir de um sujeito, os analistas criaram alternativas para intervir online, estando o analista de um lado da tela, a criança e os pais do outro lado, pois neste tempo muitas vezes se trata de restabelecer e amparar os laços da criança com o Outro encarnado pelos pais.

Por outro lado, vários impasses foram vividos nos casos das crianças que estavam transitando da posição de objeto para uma condição de sujeito. Neste tempo da constituição, os pais vão saindo de cena e a criança costuma construir em análise uma narrativa através do brincar. A análise da criança acompanha e sustenta a construção de sua fantasia fundamental na via de um deslocamento da posição de objeto do Outro. Como brincar e construir uma narrativa através da tela?

A possibilidade de intervir com as crianças está delimitada por uma característica da condição infantil. No acesso à linguagem, no processo de constituição do simbólico, há primeiramente um tempo em que predomina a metonímia. A condição de operação metafórica vai se dar nas crianças após o recalque edípico. Neste sentido, Ângela Vorcaro (1999) coloca que a intervenção de um analista com uma criança se situa muito mais no campo da metonímia, dos deslocamentos do gozo, do que na via das interpretações metafóricas. Caminhamos ampliando e deslocando sentidos através do brincar, mais do que interpretando através das palavras. Não poder brincar compartilhando o mesmo espaço e objetos, inviabilizou alguns atendimentos. Em outros, quando já havia uma narrativa consistente em andamento na transferência, foi possível inventar alternativas como a do analista estar no consultório e usar recursos do espaço e objetos para sustentar um trabalho online por algum tempo. Entretanto, diante dos limites de uma intervenção através do brincar, em alguns casos se fez necessário retomar os atendimentos presenciais em meio a pandemia. 

A decisão sobre retomar o trabalho em presença, ainda mais num tempo em que ainda não contávamos com vacinas para lidar com o Covid-19, foi vivida em diferentes tempos, em cada caso. Tempos do paciente, do tratamento e do analista. Tempos de elaboração de combinações e pactos de cuidado mútuo, tempos de construção de bordas simbólicas e imaginárias para lidar com a ameaça de contágio na relação em presença.

Imagem: Flickr, 2021.

 Na psicanálise com crianças o corpo do analista está muito em jogo. É cenário, é contraponto, é limite, é um elemento de trabalho para as produções da criança. Deste modo, o corpo do analista sempre esteve disponível aos destinos do brincar em transferência. Ao trabalharmos presencialmente na pandemia tivemos uma experiência peculiar, onde nossa disponibilidade subjetiva e física se viu limitada pela iminência do risco de contágio.  A suspensão de nossa subjetividade, um marco de nossa posição de analistas, vem sendo colocada em questão neste último ano. Produz trabalho psíquico tentar se manter imune a um imaginário de perigo que circula em nossa cultura, afinal, não estamos neutros, ou isolados em outro planeta. A pandemia toca a cada um, em nossos sintomas estruturais.

Assim, enquanto analistas, temos vivido uma experiência que nos remete à necessidade de sustentar nossa formação contínua, na qual análise pessoal, supervisão e as experiências compartilhadas com pares mostram sua força de base e potência para essa travessia. Se além disso, seguindo a trilha de Freud e Lacan, pudermos retomar conceitos e avançar em questões teóricas levantadas pelos desafios da clínica, talvez possamos fazer jus ao legado de nossos fundadores: estar à altura de nosso tempo! 

Bibliografia:

Fresler, Alba: El nino en análisis y el lugar de los padres. Buenos Aires:Paidós, 2010.

__________: “As intervenções do analista na análise de uma criança”. Em: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre n 40. Jan/jun 2011.Porto Alegre: Appoa, 2011

Vorcaro, Angela: Crianças na Psicanálise. Rio de Janeiro:Companhia de Freud, 1999.

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